uma introdução

escrever
o mesmo
outra vez
haver sempre
nova vez

(...)
parar
como pára
a pedra

viver
como o caçador
que volta
da caça
de mãos a abanar

uma introdução:
duas imagens me acompanham: um trabalho da mira schendel, com a palavra sim (e trilha sonora de um trecho da música nu com a minha música do caetano veloso: coragem grande é poder dizer sim). e por outro lado, me acompanha também o mantra de bartleby: i would prefer not to, carregado de desejos de não, de pensar a potência do negativo, da recusa, da insolência, da insubordinação. de questionar e subverter as expectativas, as histórias e modos de agir excessivamente cristalizados. entre esses dois pólos, assim como entre outros tantos que me ocupam, não sei exatamente como me posicionar, onde me colocar.
acho que o fracasso pode ser pensado como uma instância que propulsiona os gestos artísticos, que faz o trabalho se mover (ou se manter em movimento). que faz também o trabalho parar (ou se manter em estado de pausa). perseguindo um desejo ou uma impossibilidade ou algo que parece muito difícil de ser feito. o desconhecido, de que fala waltércio. o não-saber, de que fala bataille.
ao escolher o fracasso como conceito norteador da pesquisa, a primeira tarefa que me coloco é torcer e estender (como se faz com as roupas lavadas) a acepção habitual de fracasso como mera diferença entre projeto-resultado, como ponto final e negativo de um empreendimento, como oposição a um sucesso. torcer e estender a noção de fracasso de forma a não precisar pensar em pares que se opõem, não ter que optar por um ou outro nem ter que fazer uma medida-média.
eu penso o fracasso como forma de assimilar a tensão entre expectativas e possibilidades, como uma recusa ao que está estabilizado ou previamente configurado e como abertura a outras possibilidades – sem querer tirar uma lição terapêutica dos erros (o que às vezes é uma armadilha tentadora) e, sobretudo, sem excluir ou apaziguar a possibilidade de não ser.
para falar de fracasso, acho importante incluir: o que não foi feito; o que ainda não foi feito; do que se desistiu; o que se adia, se protela, se esquiva; o que não deu certo; o que é muito difícil; o que é impossível; o que é impossível num determinado momento e contexto; o que foi rejeitado ou censurado ou recusado; o que não se consegue começar; o que não se pode não começar; o que é interminável; o que não se pode terminar.
penso no fracasso em tarefas muito ordinárias, como manter a casa limpa ou evitar que as comidas se estraguem e também em lidar com a contingência dos materiais, a instabilidade de uma escultura, a presença do trabalho em um museu. o cansaço permeia o fracasso. e também a noção de um compromisso, de uma ética e uma responsabilidade. impotência, esforço.
numa longa conversa por telefone com um artista, me dei conta de que aquele/aquilo que fracassa é tomado como destituído de valor ou importância (o fracassado), na medida em que é o sucesso o que importa - tomando como referência uma certa lógica de produtividade e eficiência que nos é incutida. o paradoxo reside no fato de que uma coisa, para ser um fracasso, tem que ter importância para alguém em algum momento. é preciso que se deseje algo, que algo tenha importância e que motive e justifique um esforço. e que mesmo assim não se encontre êxito. isso é um fracasso. e por isso viver o fracasso é difícil. é preciso que o fracasso seja sincero e não apenas uma manobra retórica. não penso no fracasso como preguiça nem desculpa. pode ser que, de forma muito simples, o que é tomado como fracasso seja apenas uma escolha dissonante. de qualquer forma, me parece sempre muito prepotente nomear o fracasso.
há um peso e uma melancolia no fracasso.
gosto de pensar em um certo fracasso da visibilidade, da fala. e também da inscrição institucional.
para pensar o fracasso na experiência deste livro, começo pelos trabalhos, pelas experiências cotidianas, permeadas por leituras e conversas. uma tentativa de aproximação com outros artistas e autores. mais que mapear e/ou classificar as noções e estratégias de artistas, escritores e pesquisadores, opto por listar e lembrar e conversar sobre fracassos, coisas não feitas e projetos impossíveis.
o livro foi pensado como uma narrativa, inacabada e incompleta, de alguns diálogos e pontos nodais para esse processo de pensamento em torno do fracasso. não há conclusão nenhuma nesta reflexão, mas breves relatos sobre coisas recebidas/vistas/ouvidas/lidas/lembradas em torno da potência do que não foi (pensando no que ainda não se começou ou naquilo que não se consegue terminar).
de um projeto não realizado de doutorado o título vem, sinalizado a inquietante disjunção entre os termos trabalho e fracasso. fazer o trabalho fracassar implica desestabilizar o estatuto do trabalho e questionar a ávida necessidade de atribuir usos e utilidades aos gestos. adília lopes diz: escrever não é trabalhar. trabalhar é torturar com o tripalium. no campo de concentração nazi está escrito: o trabalho liberta. 
penso numa (paradoxal) função do fracasso como algo muito próximo da arriscada tarefa de experimentar, de quebrar as imagens - o que nos coloca num lugar de insegurança e de tensão, deflagrando a inabilidade de lidar com o que é instável, que escapa e questiona.
e penso também que escrever sobre um processo artístico é uma tarefa repleta de contatos, desvios, errâncias e, em certa medida, de fracassos. citando clarice lispector, posso dizer que a pesquisa em artes se formula pelo desejo de falar, embora escrever carregue a medida de silêncio, num esforço impregnado pela impotência de dizer tudo e a necessidade de lidar com os limites (e o desejo de ultrapassá-los) para narrar a complexidade da experiência.


clarice lispector
uma barata pode ser mais importante que um imperador. se os teus olhos olharem mais tempo para uma barata do que para um imperador, a barata torna-se mais importante que o imperador. chamamos imperador ao imperador e barata à barata porque a média dos olhos humanos olha mais tempo para o imperador do que para a barata.
o que é um revolucionário, pergunta-me a minha filha de três anos, e eu respondo: é quem olha mais tempo para uma barata que para um imperador.
e o que é um imperador, pergunta-me a minha filha. é aquele que não deixa que se olhe demasiado tempo para a barata – respondi.
e, por favor, não me faças mais perguntas. (gonçalo tavares)



* as epígrafes são de adília lopes e as duas frases sem referência vêm de trabalhos de waltércio caldas e leila danziger.